terça-feira, 8 de outubro de 2013

CRISE…


Os portugueses gostam mesmo de política. No meio de uma crise terrível perdem tempo a discutir medidas, ministros, partidos, como se só Governo e Parlamento tivessem culpas e soluções. Distraídos com debates espúrios, perdem a realidade debaixo do nariz.
Esta crise é a inevitável travagem após anos de caminho errado. Invertendo o rumo, ela criará a estrutura económica e social que lançará o próximo surto de desenvolvimento. É aí, não nas tricas dos poderosos, que se joga o futuro nacional. E está a acontecer, apesar da distracção com folhetins.
Os custos e sofrimentos são grandes, mas têm efeitos. A crise leva à falência de milhares e desemprego de centenas de milhar. Essa é a única via dolorosa da recuperação, transformando e reforçando o aparelho empresarial. É um terrível duche escocês, indispensável para expurgar a escória que se colou à economia. É preciso encontrar novas ocupações, novos produtos, novas vias. É duro, mas Portugal resistirá e ficará mais forte, ágil e sólido, para enfrentar os desafios europeu e global.
Já se vêem resultados. Quase ninguém notou, mas nas contas nacionais do último trimestre, pela primeira vez desde a entrada na CEE, a balança comercial ficou positiva. A última vez que exportámos mais do que importamos foi no último programa do FMI em 1983-85. Isto significa que a receita voltou a funcionar. Este é o bom caminho. O elemento decisivo está, não no Governo e políticas, mas na mudança de atitude de famílias e empresas. Regressam os bens velhos hábitos.
Nos primeiros 20 anos após 1974 os portugueses tomaram uma posição responsável, prudente, comprometida, temerosa mas decidida. A vida era muito pior que hoje, os perigos grandes e as tarefas exigentes. Era preciso construir uma democracia sólida e cumprir os requisitos comunitários. Mostrámo-nos à altura dos dois desafios. No meio de turbulência e perigos, o país foi coeso, diligente e criativo, como raramente fora. Foi um sucesso espantoso.
O sucesso inverteu a atitude. Na terceira década, pouco a pouco, o país foi-se acomodando. Cada um exigia direitos, esquecendo deveres. Dominava a mentalidade instalada, reivindicativa, exigente. A União Europeia passou de desafio a mecenas. Nenhum país se desenvolve assim. Não admira a "década perdida" desde 2002.
A loucura era visível. Subiam exigências e custos na saúde, educação, justiça, segurança, ambiente, sindicatos, transportes, etc. Adoptavam-se critérios europeus que não podíamos pagar. Multiplicavam-se hábitos de rico e reclamações espúrias, sempre ligadas a interesses lucrativos. Coisas que antes tinham servido eram agora desdenhadas. Os portugueses eram requintados como alemães com produtividade lusitana. A sociedade entorpecia e o Estado acudia com dinheiro emprestado. A dívida externa explodiu.
Em 2011 felizmente tudo mudou. Os empréstimos acabaram e foi preciso ter juízo. Reaprendemos então o que sempre soubéramos, mas estivera escondido por 17 anos de ilusões. Famílias e empresas retomam velhos hábitos de poupança, economia, imaginação e modéstia. Reatam-se laços de solidariedade, familiares, empresariais, comunitários, que uma confiança exagerada na assistência pública tinha enfraquecido.
O Estado teve de recuar da posição de mamã, obsessiva e omnipresente, para as funções de legislador, regulador, governo. Pessoas e empresas percebem que não vale a pena pedir ajuda às autoridades, ainda mais aflitas que elas. A todos os níveis perde-se a atitude parasitária e pedincha, regressando à saudável autonomia, iniciativa e autoconfiança indispensáveis no actual mundo global. Assim Portugal vencerá os desafios.
É difícil mudar hábitos de 17 anos. Os protestos são o último estertor da antiga mentalidade. Muitos sentem-se mesmo indignados por o Estado tirar o que nunca pôde pagar. Até acreditam que outros ministros fariam diferente. Trocar de Governo não mudaria nada, só atrasaria tudo. Felizmente na sociedade a ingenuidade passou. Não é preciso um novo 25 de Abril. Apenas voltar ao espírito de Abril.

JOÃO CÉSAR DAS NEVES

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