Os
portugueses gostam mesmo de política. No meio de uma crise terrível perdem
tempo a discutir medidas, ministros, partidos, como se só Governo e Parlamento
tivessem culpas e soluções. Distraídos com debates espúrios, perdem a realidade
debaixo do nariz.
Esta
crise é a inevitável travagem após anos de caminho errado. Invertendo o rumo,
ela criará a estrutura económica e social que lançará o próximo surto de
desenvolvimento. É aí, não nas tricas dos poderosos, que se joga o futuro
nacional. E está a acontecer, apesar da distracção com folhetins.
Os
custos e sofrimentos são grandes, mas têm efeitos. A crise leva à falência de
milhares e desemprego de centenas de milhar. Essa é a única via dolorosa da
recuperação, transformando e reforçando o aparelho empresarial. É um terrível
duche escocês, indispensável para expurgar a escória que se colou à economia. É
preciso encontrar novas ocupações, novos produtos, novas vias. É duro, mas
Portugal resistirá e ficará mais forte, ágil e sólido, para enfrentar os
desafios europeu e global.
Já
se vêem resultados. Quase ninguém notou, mas nas contas nacionais do último
trimestre, pela primeira vez desde a entrada na CEE, a balança comercial ficou
positiva. A última vez que exportámos mais do que importamos foi no último
programa do FMI em 1983-85. Isto significa que a receita voltou a funcionar.
Este é o bom caminho. O elemento decisivo está, não no Governo e políticas, mas
na mudança de atitude de famílias e empresas. Regressam os bens velhos hábitos.
Nos
primeiros 20 anos após 1974 os portugueses tomaram uma posição responsável,
prudente, comprometida, temerosa mas decidida. A vida era muito pior que hoje,
os perigos grandes e as tarefas exigentes. Era preciso construir uma democracia
sólida e cumprir os requisitos comunitários. Mostrámo-nos à altura dos dois
desafios. No meio de turbulência e perigos, o país foi coeso, diligente e
criativo, como raramente fora. Foi um sucesso espantoso.
O
sucesso inverteu a atitude. Na terceira década, pouco a pouco, o país foi-se
acomodando. Cada um exigia direitos, esquecendo deveres. Dominava a mentalidade
instalada, reivindicativa, exigente. A União Europeia passou de desafio a
mecenas. Nenhum país se desenvolve assim. Não admira a "década
perdida" desde 2002.
A
loucura era visível. Subiam exigências e custos na saúde, educação, justiça,
segurança, ambiente, sindicatos, transportes, etc. Adoptavam-se critérios
europeus que não podíamos pagar. Multiplicavam-se hábitos de rico e reclamações
espúrias, sempre ligadas a interesses lucrativos. Coisas que antes tinham
servido eram agora desdenhadas. Os portugueses eram requintados como alemães
com produtividade lusitana. A sociedade entorpecia e o Estado acudia com
dinheiro emprestado. A dívida externa explodiu.
Em
2011 felizmente tudo mudou. Os empréstimos acabaram e foi preciso ter juízo.
Reaprendemos então o que sempre soubéramos, mas estivera escondido por 17 anos
de ilusões. Famílias e empresas retomam velhos hábitos de poupança, economia,
imaginação e modéstia. Reatam-se laços de solidariedade, familiares,
empresariais, comunitários, que uma confiança exagerada na assistência pública
tinha enfraquecido.
O
Estado teve de recuar da posição de mamã, obsessiva e omnipresente, para as
funções de legislador, regulador, governo. Pessoas e empresas percebem que não
vale a pena pedir ajuda às autoridades, ainda mais aflitas que elas. A todos os
níveis perde-se a atitude parasitária e pedincha, regressando à saudável
autonomia, iniciativa e autoconfiança indispensáveis no actual mundo global.
Assim Portugal vencerá os desafios.
É
difícil mudar hábitos de 17 anos. Os protestos são o último estertor da antiga
mentalidade. Muitos sentem-se mesmo indignados por o Estado tirar o que nunca
pôde pagar. Até acreditam que outros ministros fariam diferente. Trocar de
Governo não mudaria nada, só atrasaria tudo. Felizmente na sociedade a
ingenuidade passou. Não é preciso um novo 25 de Abril. Apenas voltar ao
espírito de Abril.
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
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